terça-feira, 3 de março de 2009

Aborto: o legal e o existencial?

Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4185

João Baptista Herkenhoff
escritor, professor livre-docente da Universidade Federal do Espírito Santo


A Declaração Universal dos Direitos Humanos não se pronuncia expressamente sobre o aborto. Há o princípio geral de defesa da vida. Numa interpretação ampla, esse princípio proíbe o aborto. Dizemos que o princípio geral veda o aborto porque, no feto, inquestionavelmente, está presente a vida humana. Mas a Declaração não se define incisivamente sobre o aborto para considerá-lo lícito ou ilícito.

Não obstante outros aspectos da questão, creio que, fundamentalmente, dois são os argumentos antagônicos principais, em face do assunto:

a – o aborto seria lícito como decorrência do direito da mulher ao uso do próprio corpo;

b – o aborto não seria lícito porque o feto não é apenas uma expectativa de vida, o feto é uma vida humana em desenvolvimento. O direito da mulher ao próprio corpo não lhe permitiria eliminar a vida de um filho que está para nascer.

Além das teses que se opõem há um bloco de questões aparentemente laterais. A meu ver, essas questões, laterais na aparência, são centrais na essência. Não vejo esses pontos suficientemente discutidos nos debates que se travam sobre o aborto. Trata-se do seguinte:

a sanção penal é apropriada para evitar o aborto?

o aborto é uma questão jurídica ou uma questão existencial?

A psicanalista Marie Balmary, debruçando-se sobre a realidade da França, onde o aborto é permitido, tem uma palavra a dizer.

Conta Marie Balmary, à luz de sua experiência de consultório, que como o aborto, na França, é legal, a dor psíquica subjacente é reprimida. A legalização do aborto não teve força para sepultar o sentimento de angústia decorrente do ato. Permanece na mãe um sentimento de perda, não obstante ela própria tenha pedido para abortar o filho.

Na minha experiência de juiz, julguei umas duas dezenas de processos de aborto. Normalmente, só há processo pela prática de aborto, no Brasil, quando o caso se complica e a mãe, em perigo de vida, vai para o hospital. O hospital é obrigado a fazer a comunicação da ocorrência à Polícia. São abortos realizados por parteiras leigas que, na linguagem popular, são chamadas "fazedeiras de anjo".

Sabe-se da existência de clínicas clandestinas, onde o aborto é praticado discretamente, sem complicações.

Nos casos que chegaram a mim, eu só me defrontei com situações dramáticas. Nunca veio a minha presença mulher que tivesse abortado por razões de conforto ou por motivo fútil. Testemunhei e vivenciei essa dor existencial percebida por Marie Balmary no seu consultório de psicanalista. Em todos os casos que julguei, sem uma única exceção, minha sentença, em razão da carência de dolo do agente (no caso, a mãe) foi sempre de absolvição.

Dei sentenças dessa natureza estribado em teorias de interpretação que permitem ao magistrado, à luz da Ciência do Direito, assim proceder.

O raciocínio que a boa exegese, a meu ver, recomenda é este: não há previsão da modalidade culposa para o crime de aborto, razão pela qual o crime só é punido se praticado dolosamente. Não se pode reconhecer o dolo quando alguém é impelido à prática de uma conduta, em princípio criminosa, mas que perde esse caráter por circunstâncias que obscurecem a expressão da vontade.

Reconheço que, na prática, a maioria dos juízes tende à estrita aplicação do preceito legal, presos a um legalismo que desfavorece a absolvição. Daí a pertinência de uma mudança legislativa.

Um dos casos que mais me impressionou foi o de uma mocinha que veio a mim rotulada como ré. Segundo as testemunhas, toda noite embalava um berço vazio, como se nele houvesse uma criança.

Em razão dessa vivência de juiz é que suponho que não são contraditórias as seguintes colocações, que me parecem acertadas:

a - o aborto não é lícito, a vida humana, desde a concepção, é sagrada;

b - a mulher tem direito ao próprio corpo mas esse direito não lhe dá a faculdade de dispor da vida do feto;

c - o aborto está, em princípio, no âmbito do jurídico, pois que envolve uma relação interpessoal: a mãe e o filho por nascer;

d - relação interpessoal, conflito de interesses jurídicos, o aborto, numa primeira perspectiva, meramente lógica, deveria ser definido como crime;

e - o tratamento meramente jurídico, entretanto, é impróprio para abarcar toda a dramaticidade do aborto; no aborto, o existencial suplanta e absorve o jurídico;

f - em razão do conteúdo existencial do aborto, ele mereceria um tratamento jurídico especial:

f-1 – ou um tratamento jurídico semelhante ao que é dado à tentativa de suicídio (a tentativa de suicídio não é crime, mas instigar o suicida a que pratique esse ato é crime);

f-2 – ou o estabelecimento, na lei, de uma alternativa para que o juiz possa deixar de aplicar a pena quando, em face das circunstâncias, verificar que o ato foi praticado por uma razão existencial escusável;

g - um conjunto de medidas sociais, pedagógicas, psicológicas, econômicas, médicas deveria proteger o direito de nascer; a sociedade tem o dever de socorrer com empenho e eficácia a mulher grávida; todo o esforço social deve ser desenvolvido para que a mulher não seja compelida ao aborto.



Sobre o autor
João Baptista Herkenhoff

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Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº66 (06.2003)
Elaborado em 06.2003.
Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
HERKENHOFF, João Baptista. Aborto: o legal e o existencial . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: . Acesso em: 03 mar. 2009.

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