terça-feira, 3 de março de 2009

A eutanásia

Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1861

Wilson Paganelli
advogado e professor em Castilho (SP)


I- CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Este trabalho não tem, evidentemente, a pretensão de abordar o tema em sua plenitude, explorando todos os aspectos possíveis a ele relacionados. Podemos buscar explicação para a parcimoniosa literatura, a respeito do tema, no fato de a eutanásia não ser admitida pelo nosso Direito Penal - apesar de a ser em outras legislações. E talvez o valor deste escorço centre-se no esforço de pesquisa em obras de autores consagradíssimos e na compilação de conceitos e opiniões abalizadas (para os quais pedimos licença com a certeza de que colaboram decisivamente para grassar o conhecimento jurídico em assunto tão exíguo literariamente) servindo como obra menor ancilar para enfoques do tema a estudantes e a quem possa interessar-se. Se seu conteúdo não aborda todos os aspectos, resta-nos a certeza de que, por outro lado, não o é vazio! O objetivo maior foi o de reunir o maior número de dados possível em um só trabalho.

O assunto é instigante. Inúmeros casos chegam ao conhecimento público de pessoas que se decidem pelo extremo, como o do brilhante psicanalista Bruno Bettelheim, famoso por suas pesquisas acerca da psicologia infantil.

Com idade avançada, sobreveio-lhe derrame cerebral, furtando-lhe a capacidade de trabalho. Solitário pela morte da esposa e pelo desentendimento com a filha, no quarto da clínica de repouso, onde se internara, ingeriu tranqüilizantes e cobriu a cabeça com sacola plástica, morrendo asfixiado.

Mais recentemente, como ilustração, o piloto brasileiro - Marco Campos - sofreu acidente no GP francês, entrando em profundo estado de coma. A família foi chamada a Paris e autorizou que fossem desligados os aparelhos que o mantinham vivo.

Na Holanda, onde o tema tem suscitado grande preocupação nas classes médica e jurídica, há estimativas que variam de três a doze mil casos anuais de morte por eutanásia. É o caso de se questionar: até que ponto uma pessoa infelicitada por uma doença que, fatalmente, despojá-la-á do bem supremo - a vida - terá direito de dispor de sua existência, antecipando a morte natural? Ou ainda, estando a pessoa desprovida da consciência, terceiros autorizarem-na por ela? Há responsabilidades penal e civil?

No término deste trabalho, algumas questões fundamentais terão sido discutidas e o leitor poderá tirar algumas conclusões a respeito do tema. Como dissemos, não com a amplitude que o tema merece, mas, ao menos, como resultado de nosso esforço.



II- INTRODUÇÃO

A- A ORIGEM DA PALAVRA EUTANÁSIA

Ao iniciarmos o trabalho sobre assunto tão controvertido, comecemos por conhecer a origem da palavra "EUTANÁSIA". Derivada do grego EU (bom) e THANATOS ( morte) quer significar, vulgarmente, a boa morte, a morte calma, a morte doce, indolor e tranqüila. A expressão teve origem no século XVII, quando Francis Bacon cunhou-a como designação da função do médico, quando este proporcionava ao enfermo morte indolor, calma, doce.

B- O CONCEITO JURÍDICO

Juridicamente, entende-se o direito de matar ou o direito de morrer, em virtude de razão que possa justificar semelhante morte, em regra, provocada para término de sofrimentos, ou por medida de seleção, ou de eugenia.

A eutanásia provocada por outrem, ou a morte realizada por misericórdia ou piedade, constitui homicídio ou crime eutanásico, considerado como a suprema caridade.

No entanto, a eutanásia não é admitida pelo nosso Direito Penal, apesar de ser admitida em outras legislações, como já dissemos.

Assim, de forma bem genérica, conforme nos ensina o Dr. Erik Frederico Gramstrup, podemos defini-la como "eliminação de seres considerados sem valor vital"



III - A EUTANÁSIA NA HISTÓRIA DOS POVOS

Muitos autores, ao tratar do tema, citam os usos dos povos antigos, cuja sensibilidade ética tanto se distanciava da nossa.

Em Esparta, por exemplo, era prática comum, e até mesmo obrigatória, a precipitação de recém-nascidos malconformados do alto do monte Talgeto.

Os birmaneses, por sua vez, enterravam vivos os idosos e os enfermos graves.

Populações rurais sul-americanas, forçadamente nômades por fatores ambientais, sacrificavam anciães e enfermos, para não os abandonar ao ataque de animais selvagens.

Se nos reportarmos a povos modernos - contemporâneos, por exemplo - basta que nos lembremos da Holanda, citada na nossa apresentação, ou mesmo do Japão.



IV- CLASSIFICAÇÃO

É tarefa árdua estabelecer uma classificação para a eutanásia, capaz de fixar terminologia e permitir tratamento sistemático. A literatura a respeito propõe - e tem sido aceita pelos estudiosos - classificação de acordo com a iniciativa, os fins e os métodos. Assim, temos as seguintes modalidades:

A- na forma espontânea, ou libertadora - ocorre quando o enfermo incurável provoca a morte por próprios meios - como no caso citado, em nossa apresentação, do psicanalista Bettelheim - ou pede ao médico que o faça;

B- na forma provocada ou "piedosa" (oposta à forma espontânea ou libertadora) - ocorre quando o médico ou familiar põe termo à agonia, na impossibilidade de o interessado manifestar sua vontade;

C- na forma comum - quando o fim alegado é abreviar a agonia do enfermo incurável e em estado terminal;

D- eutanásia eugênica - a finalidade perseguida é o aperfeiçoamento racial.

Os que abraçam essa forma justificam-na como meio de reduzir a pesada carga, para a sociedade, daqueles pacientes com desarranjos físicos e psíquicos graves. Pregam, na verdade, a eliminação simples, pura e cruel dos psicopatas, monstros, alcoólatras, criminosos pervertidos e inválidos e acrescentam, como argumento, o impedimento da propagação de tais problemas.

Sem dúvida, ao menos para nós, essa forma avulta-se como conceito repugnante;

E- eutanásia ativa - nessa classificação, considera-se o modus procedendi. É ativa quando o agente ministra substância capaz de provocar a morte instantânea e indolor;

F- eutanásia passiva ou ortotanásia (ou, ainda, eutanásia por omissão)- obviamente, a modalidade passiva opõe-se à ativa. O médico deixa de prolongar, por meios artificiais e extraordinários, a vida irrefragavelmente condenada.

Como dissemos, essa classificação, embora elaborada de acordo com determinados aspectos, é a mais aceita por estudiosos e doutrinadores.



V- EUTANÁSIA - PRÓS E CONTRAS

Da mesma forma que o aborto, que a pena de morte, que a questão da guerra justa, a discussão sobre a eutanásia é instigante, polêmica e antiquíssima. As opiniões não só se dividem numericamente, mas também qualitativamente, pois observa-se que mentes ilustres, doutrinadores respeitáveis, situam-se em pólos opostos. São argumentos profundamente abalizados, tanto favoráveis quanto contrários.

Inicialmente, levantemos as opiniões, numa síntese, daqueles que são favoráveis, sem a preocupação de citar nomes. O embasamento oferecido varia em proporção direta às formas admitidas.

Vamos dividir os que apresentam argumentos favoráveis em dois grupos: os permissivistas mais radicais e os mais moderados. Apóiam-se os mais radicais nas seguintes alegações:

a- toda vida gravemente tolhida em suas manifestações por padecimento físico ou moral carece de valor;

b- nessas hipóteses, pode representar gravame injusto para a família e para a sociedade, por exemplo, ocupando leitos hospitalares;

c- se a situação é irreversível, não há porque lutar contra o que as próprias forças da ciência revelam-se impotentes;

d- o interessado tem direito à morte condigna; e

e- os que admitem a forma eugênica ainda dizem que a mesma atenuaria, na vida social, a proliferação das mazelas da população eliminada, evitando o "mau exemplo" ( no caso dos criminosos) e a propagação genética.

Os mais moderados acrescentariam a tudo isso certas condicionantes, como:

a- o consentimento do interessado ou de membro da família;

b- a certeza da proximidade e inevitabilidade da morte atestada por profissional habilitado etc...

Neste grupo, costumam posicionar-se os que rejeitam a eutanásia eugênica, em princípio.

O Dr. Erik Frederico Gramstrup batiza essa corrente de pensamento como "teoria Hedonista", pois as razões invocadas poderiam ser resumidas em um único princípio: o de que a vida humana só mereceria apreço na medida em que fosse apta para proporcionar prazeres e utilidades, para a própria pessoa ou para a comunidade. Para ele, "isso significa olvidar o valor absoluto da vida, que persegue fins superiores a si, sendo portanto indisponível."

Aqui, claro, iniciam-se, pois, os argumentos contrários à eutanásia, fazendo críticas, evidentemente, à posição precedente. O princípio fundamental é de natureza deontológica, ou seja, filosófica, metajurídica: o homem é simples peça encartada em uma ordem universal superior, não lhe competindo usar mal de seu livre-arbítrio para subvertê-la. Voltamos àqueles princípios aprendidos no Direito Natural. O homem não pode tirar a própria vida, que é um bem supremo. ( Deus deu, Deus tira).

Assim, a simples dor, por exemplo, não é justificativa aceitável para o extermínio de si ou de outrem. O objetivo supremo da existência passa ao largo do deleite, pois que, no seu curso, as situações de desconforto são mais freqüentes do que as de prazer. Como cita o Dr. Erik, a expressão "vida sem valor" é tão contraditória quanto a quadratura do círculo!

Outro aspecto de que não podemos fugir aponta para os problemas dos encargos sociais gerados pelo enfermo.

No Jornal O Estado de São Paulo, de 16 de maio de 1990, na página 14, escreveu o ilustre criminalista, Dr. Luiz Flávio D´Urso:

"Ora, não sejamos hipócritas, pois o que realmente leva à prática da eutanásia não é a piedade ou a compaixão, mas sim o propósito mórbido e egoístico de poupar-se ao pungente drama da dor alheia."

E como disse o Dr. Erik, completando:

"... e aos encargos econômicos e pessoais que ela representa."

Palavras duras, mas a realidade! Há inúmeros exemplos na sociedade. E, de fato, em nada melhora esse quadro se o paciente der o consentimento. Paralelo ao fato de ser um direito irrenunciável, um enfermo em estado terminal não possui condições para manifestar sua vontade. E, mesmo que manifestasse, seria escasso, senão nenhum, o valor de sua manifestação de vontade.

Ora, se se nega, com habitualidade, eficácia fática e jurídica ao consentimento de quem tem o desenvolvimento mental incompleto ou obnubilado, quanto mais a quem perdeu o poderoso instinto de autoconservação, por estar com as faculdades perturbadas!

Além do mais, possui razões de sobra todos aqueles que defendem a tese de que a medicina não é pitonisa infalível. Em quantas hipóteses não restariam dúvidas quanto ao tempo de sobrevivência?

Há casos reais, de pessoas desenganadas por médicos, em que eles vaticinam três a quatro meses de vida para seu paciente. E acabam falecendo antes do próprio paciente, anos e anos depois! Quantas vezes uma espera não daria à técnica o tempo necessário para oferecer solução satisfatória?

Pior. Que dizer dos casos em que o profissional atestasse um quadro dramático com intenções pérfidas, a soldo, por exemplo, dos herdeiros?

Quanto ao argumento eugênico, refuta-se com indignação. Faz pressupor que um grupo ou determinados grupos alcem-se na posição de semideuses, com arbítrio para definir que peculiaridades retiram humanidade a um ser.

Conseqüências desastrosas dessa tese aparecem na história da humanidade. O Nazismo, por exemplo. Quantas barbaridades não foram animalescamente cometidas em nome da conservação de uma suposta "pureza racial"?

Por outro lado, muitos que se posicionam como favoráveis à eutanásia não se estariam perguntando: "Somos obrigados ética e juridicamente a prolongar, em vão, a agonia dos mortos-vivos? "

Evidentemente, essa não é a posição da grande maioria que é contrária à eutanásia. O Jornal O Estado de São Paulo, de 25 de abril de 1990, trouxe a notícia seguinte:

"No dia 28 de março, R.C.C., de 23 anos, foi internada no Hospital das Clínicas de São Paulo com o fígado praticamente sem funções e com o pulmão esquerdo comprometido por uma infecção. Internada na Unidade de Terapia Intensiva, seu estado agrava-se a cada dia. Seu sangue não coagula, sua respiração é feita por meio de aparelhos e, aos poucos, ela vai perdendo a consciência."

Como diz a maioria dos estudiosos que defendem agudamente a não-eutanásia: quando se afirma a transcendência da vida humana, não se quer dizer mais do que literalmente a frase assevera.

Realmente, não há motivo algum para que se apliquem lenitivos extraordinários se a vida não mais se sustenta, em virtude do colapso de suas funções. É o caso de R.C.C.

O ilustre Professor Paulo José da Costa Jr escreveu, em 3 de junho de 1990, no jornal O Estado de São Paulo, na página 44:

"Como se vê, a ortotanásia não implica qualquer conduta do médico. Este não pratica, mesmo solicitado, a morte piedosa. Não age: deixa apenas de prolongar, por meios artificiais, uma vida que, além de sofrida, mostra-se irrecuperável."

Eis a posição de vários doutrinadores. São contrários à eutanásia, mas favoráveis a ortotanásia, tomada a expressão no sentido estrito, isto é, de omissão no prolongamento artificial e desnecessário de uma existência inviável.

Ao analisar a opinião do Professor Paulo José, assim se posicionou o Dr. Erik Frederico:

"A nosso ver, aquele penalista ( Dr. Paulo José) só se equivoca ao equiparar essa hipótese àquela do Projeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal, no § 3º do artigo 121."

A conclusão da maioria contrária à eutanásia ( mas favorável à ortotanásia) pode assim ser sintetizada:

a- proscrição da eutanásia ativa;

b- garantia de morte digna ao paciente, empregando-se os sedativos necessários;

c- possibilidade da interrupção do tratamento por meios extraordinários, notadamente de terapia reanimatória no caso de coma irreversível.

Segundo o Dr. Erik Frederico, a orientação acima adapta-se à do Código de Ética Médica que, no seu artigo 66 (Cap. V), veda ao profissional:

"Utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal".

Tal preceito, na verdade, repete a passagem do juramento de Hipócrates: "A ninguém darei, para ajudar, remédio mortal, nem conselho que o induza à perdição."



V- O DIREITO À VIDA

A- Algumas considerações preliminares

Quando falamos em Direito à Vida, passa pela nossa mente que, frente aos demais direitos da personalidade, a vida apresenta-se, por assim dizer, como substância - entendido no sentido aristotélico: aquilo que existe em si - em face dos acidentes - que existem em outro.

Como nosso tema é a eutanásia, pedimos permissão ao leitor para abrirmos parênteses e abordarmos um outro assunto que, ao final, será atado ao direito à vida, visto que há dependência, em se tratando da eutanásia.

Trata-se do direito à integridade da pessoa humana e sua tutela.

A integridade física pode ser definida como um "modo de ser físico da pessoa, perceptível mediante os sentidos".É direito essencial da pessoa, por ser este um direito de personalidade que consiste no direito que cada um tem de não ter seu corpo atingido por atos ou fatos alheios.

Conforme nos ensina Pontes de Miranda, no seu Tratado de Direito Privado, v.VII/16/17, seu objeto pode consistir em não ser atingido o corpo da pessoa e não a propriedade deste corpo, advindo daí que o direito à integridade corporal é um bem em si, protegido pelo Direito.

Contudo, a tutela da integridade física não é direito recente. Em Ulpiano, na Lex Aquilia, encontramos a máxima "directam enim non habet, quoniam dominus membrorum suorum nemo videtur", o que significa que o indivíduo possui, em seu nome, o direito de ação por meio da Lex Aquilia, por não ter a direta, pois a ninguém se considera dono de seus membros.

Pode-se concluir, pois, que já na antiga Roma, não se considerava o direito ao próprio corpo como um direito de propriedade, tutelando-se, porém, o corpo do indivíduo contra as agressões alheias.

Hoje, encontramos sob a denominação de direito à integridade física, diversos outros direitos como subtipificações dos direitos de personalidade, a saber: direito à vida, à integridade corporal, e à saúde. O direito de integridade corporal se situa logo atrás do direito à vida.

O direito à vida diz respeito à própria existência do indivíduo, enquanto o de integridade corporal, ou simplesmente, de integridade física, consiste na incolumidade física da pessoa e em sua saúde. Incide na espécie o princípio do primado do direito mais relevante, no dizer de Pontes de Miranda.

Ao de leve, dizemos, para completar, que o direito à integridade física não se reduz à simples incolumidade anatômica e externa do corpo humano. Esse direito é abrangido também pelo direito à saúde ou o direito de não ser contagiado por outrem. ( É o direito ao pudor, denominado por Messineo, uma vez que deve ser garantida e preservada a personalidade humana.) Saúde, doença e medicina constituem a tríade que invade nosso direito na atualidade.

Quanto à natureza do direito em pauta, muito se discutiu. Chegou-se mesmo a dizer que esse direito constituir-se-ia em um direito de propriedade. Ultimamente, este ponto de vista não vem encontrando apoio entre os autores, que não mais aceitam a idéia de que cada um de nós possui um direito de propriedade sobre o próprio corpo. Ihering, em seus ensinamentos, já o negava. Um dos principais argumentos dos opositores à teoria da propriedade sobre o próprio corpo está no fato de que o proprietário de uma coisa tem o poder de disposição sobre a mesma, amplamente. Assim, na qualidade de proprietário de seu corpo, teria o indivíduo amplo poder de disposição sobre o mesmo, podendo mutilá-lo, ou destruí-lo, estando também, conseqüentemente, autorizada a extrema diminuição permanente da integridade física que se traduziria na perda da própria vida. Estaria, desse modo, autorizado o suicídio. E também a eutanásia.

Não se confunde, pois, o direito à integridade física com o poder de disposição que o proprietário possui em relação à coisa que lhe pertence, objeto de seu direito. Não possui o indivíduo, em relação ao próprio corpo, um ius utendi, um ius fruendi e um ius abutendi como possuiria em relação a um bem de sua propriedade.

Queremos, ainda, lembrar que, ao contrário do direito à vida, que é um direito indisponível, o direito à integridade do homem pode, dentro de certos limites, ser disponível, apesar de ser um direito absoluto. Obviamente, desde que essa disponibilidade não resulte uma diminuição permanente na integridade física ou que não seja contrária à lei e aos bons costumes. Essa disponibilidade chegou a tal abuso, que Josserand, já em 1932, afirmava lucidamente que a disponibilidade do indivíduo sobre seu corpo chegava ao ponto de transformá-lo em matéria de transação.

Dentro do que nos interessa - para não fugirmos demais ao tema proposto - existem atos ilícitos em relação ao que afirmou Josserand. Esses atos ilícitos dizem sempre respeito ao corpo vivo, não se aplicando ao corpo morto. E dentre eles, constituindo-se atentados à integridade física do indivíduo, estão aqueles que comprometem a conservação do ser humano, a exemplo dos duelos, dos contratos que permitem a eutanásia (sobre os quais falaremos mais adiante) ou que causem mutilação, resultante na diminuição permanente da integridade física.

Conforme vimos, existe o elo entre o direito à vida e o direito à integridade física, no que concerne ao tema de nosso trabalho - a eutanásia. Assim, mesmo que o indivíduo enfermo em estado terminal decida, conscientemente, pela eutanásia, pelo exposto, percebemos que o ato será ilícito, dentro do nosso Direito. O que dirá se autorizado por terceiros!



B- A vida é um direito indisponível

Feitas as observações preliminares, comecemos por lembrar a Constituição

Federal de 88, no seu artigo 5º, que se refere justamente à inviolabilidade.

De forma concreta, essa tutela desdobra-se:

a- no campo penal: pela tipificação das figuras relativas ao homicídio; infanticídio; aborto; induzimento, instigação e auxílio ao suicídio; e ainda pela instituição da legítima defesa como excludente da antijuridicidade ;

b- no campo civil: o ressarcimento dos danos e o direito aos alimentos (embora se deva admitir que seu objeto imediato seja a saúde).

Desfruta daqueles caracteres comuns ao gênero em que se insere: essencialidade, inatismo, superioridade hierárquica, oponibilidade absoluta, interioridade, extrapatrimonialidade, intransmissibilidade e indisponibilidade. Quando surge o direito à vida?

Segundo o Dr. Erik Frederico, em obra já citada, esse direito surge no instante da concepção, visto que, formado o zigoto, este já apresenta o número de cromossomos indicador da espécie humana. Tal critério, segundo ele, lastreado nos dados da ciência biológica, afigura-se como indiscutível. O prolongamento dá-se até morrer, expressão, por sua vez, difícil de definir, pois não ocorre num átimo, senão mediante processo desorganizador. São sinais abióticos imediatos: a inconsciência, a insensibilidade, a imobilidade, a abolição do tônus muscular, os colapsos respiratórios e os circulatórios. Certeza, no entanto, dá-nos os fenômenos consecutivos: perda de peso e pergaminhamento da pele gerados pela evaporação tegumentar; resfriamento; manchas de hipóstase e a rigidez cadavérica.

Quando se fala em extrapatrimonialidade, nem por isso se quer dizer que a vida não esteja protegida por sanções de caráter civil. Trata-se apenas de deixar claro que a utilidade econômica é mediata, segundo o convincente critério lembrado por Adriano de Cupis.

Grosso modo, o direito que é mais veementemente nuclear é o direito à vida. Sem ele, quaisquer outras prerrogativas juridicamente tuteladas perderiam o interesse. Sua marca registrada é a indisponibilidade.



VI - CULPA CIVIL E CULPA PENAL

Como nosso tema é a eutanásia, não poderíamos deixar de consultar literatura que dispusesse a respeito da responsabilidade civil de um médico. Quando falamos em atos ilícitos, podemos também nos lembrar de que fato ilícito pode gerar efeitos civis e penais, além de outros (administrativos, tributários ) que, estranhos à nossa análise, não abordaremos, evidentemente.

Iturraspe lembra que a conduta do médico pode ser ativa ou passiva, por ação ou omissão, e, quando danosa, pode gerar responsabilidade civil ou penal - ou ambas.

Ambas têm pontos coincidentes. Pressupõem resultado danoso para o bem jurídico considerado - a saúde do paciente- a ação ou omissão desviada dos deveres de cuidado e a relação de causalidade.

Casabona, reconhecendo as similitudes, aponta as distinções entre elas:

a- a culpa penal se caracteriza por sua tipicidade, a conduta proibida deve encontrar-se descrita na lei penal - o que não ocorre com o mesmo rigor na culpa civil;

b- as conseqüências de uma e outra são distintas: culpa penal pressupõe cominação de uma pena, enquanto a civil gera o direito de reparação ou recomposição do dano;

c- no terreno da responsabilidade, a penal é estritamente pessoal, enquanto a civil poderá estender-se a outras pessoas;

A responsabilidade civil do médico, para que se configure, pressupõe:

a- comportamento próprio, ativo ou passivo;

b- que tal comportamento viole o dever de atenção e cuidado próprios da profissão médica, tornando-se antijurídico;

c- a conduta deve ser imputada subjetivamente ao médico, a título de culpa ou dolo;

d- que haja um resultado danoso, material ou moral;

e- relação de causalidade entre o ato médico e o dano sofrido.

Para Casabona, que não discrepa, os elementos são:

a- comportamento danoso; b- produção de um dano; c- nexo causal entre conduta e dano; d- culpabilidade do autor do dano.

Tem-se tornado freqüente, em alguns tratamentos médicos, mormente cirúrgicos, a estipulação de cláusulas contratuais de irresponsabilidade ou de não-indenizar. Evidente que não possuem nenhuma eficácia no Direito Penal, uma vez que o jus puniendi do Estado é exercitado haja ou não interesse do particular.

No domínio do Direito Civil é que a questão se apresenta: seria válido que médico e paciente estabelecessem pacto em que este, antes de iniciado o tratamento, renunciasse a exercitar qualquer ação civil de responsabilidade? Ou apenas limitar o alcance de possível indenização?

Aguiar Dias responde, referindo-se ao dever dos médicos de empregar todos os meios a fim de obter a cura. A responsabilidade médica nasce de erro manifesto. Decorre daí que o médico, em certo grau, goza de uma cláusula tácita de irresponsabilidade, na proporção da margem de erro tolerada pela imperfeição da própria ciência.

Ana Prata noticia a opinião de grande número de juristas portugueses, para os quais "estando a pessoa humana fora do comércio, nunca poderão ser válidos os contratos que a tenham por objeto"

Daí serem inoperantes cláusulas de irresponsabilidade que violem direitos inalienáveis, como o direito à vida.

Contudo, o problema permanece aberto à discussão - e não se exaure no estreito limite da responsabilidade médica. Insere-se, antes, na perspectiva ampla dos direitos de personalidade ( que, ao de leve, enfocamos anteriormente). Tanto que Adriano de Cupis adverte:

"Tanto nel determinare la disponibilitá del diritto all´integritá fisica, quanto nell´imporre esso stesso delle limitazioni di questo diritto, l´ordinamiento giuridico è posto di fronte a um diritto della personalitá. Tenga ci presente l´interprete nel valutare cosi la disciplina degli atti di dispozione, come le limitazzioni legali; e si accorgerá che, se il margine lasciato alla volontá personale per la disposizione del diritto prudentemente calcolato, ancor maggiore èla cautela che ispira la legge nell´introdurre delle dirette limitazioni dello stesso diritto; appunto perché trattasi di un diritto della personalitá. L´ordinamiente giuridico, che attribuisce tale diritto all´individuo umano per il rispetto della sua personalitá, lo difende in notevole misura contro lo stesso individuo, e valuta con cautela l´esigenza del pubblico intresse al fine del suo sacrificio"



VII- A EUTANÁSIA NO ÂMBITO PENAL

Equipara-se ao homicídio, sem dar ouvidos às inovações ocorridas no estrangeiro. Os códigos soviético (1922), peruano (1942) e uruguaio (1933), por exemplo, sobre o assunto, apresentaram, respectivamente, isenção de pena ao homicídio por compaixão cometido a pedido da vítima; impunidade ao auxiliador que agiu por compaixão e perdão judicial.

Eis o artigo 37 do Código uruguaio:

"Del homicidio piedoso - Los jueces tienem la facultad de exonerar de castigo al sujeto de antecedentes honorables, autor de un homicidio, efectuado por móviles de piedad, mediante súplicas reiteradas de la victima."

O primeiro eco, no Brasil, ouviu-se no Anteprojeto da Parte Especial do CP, cujo artigo 121, parágrafo terceiro, foi citado no rodapé da página 11. O infeliz dispositivo mereceu do Prof. Goffredo Telles Jr a irônica observação:

"De ora em diante, ponham os velhos ricos suas barbas de molho..." Enquanto não se transformar em lei, a matéria enquadra-se, como explicaremos adiante, como delito privilegiado.

Segundo Jimenez de Asúa, as hipóteses de tratamento que a eutanásia pode receber são quatro:

a- permitir ao juiz a concessão de perdão - deixa de aplicar a pena, reconhecendo circunstâncias que o justifiquem. Em nosso direito, é causa de extinção de punibilidade;

b- pode-se elencar o móvel compassivo dentre as causas de exclusão de antijuridicidade - nesse caso, a conduta é típica, mas abrangida por norma geral permissiva, que a torna lícita;

c- considerada como delito ordinário ou privilegiado;

d- como forma de "ação socialmente adequada".

Nossa lei penal vigente preferiu cuidar do tema como delito privilegiado.

Não criou tipo autônomo, mas uma hipótese atenuada do tipo básico de homicídio. Está no artigo 121, parágrafo 1º, do CP, que faculta a redução de pena ( de um sexto a um terço) imposta a quem matou impelido por motivo de relevante valor social ou moral.

A diferença com relação à atenuante genérica do artigo 65, III, a, está no fato de que aquela especial redução de pena não encontra obstáculo sequer no mínimo cominado pelo artigo 121. O homicídio piedoso é exemplo constante da Exposição de Motivos, no que se refere a crimes privilegiados. Levando-se em consideração, quando abordamos, no tópico relativo à classificação da eutanásia, que abraçamos a tese defendida pelo Dr. Erik Frederico a respeito da ortotanásia, a que somos favoráveis, impõe-se uma questão: se a omissão é penalmente relevante, em conformidade ao artigo 13 do Código Penal, em que se baseariam os defensores da ortotanásia para justificá-la, visto que houve defesa, anteriormente, da sua licitude? A resposta está no próprio dispositivo: se inexiste dever de agir, comando que obrigue a impedir o resultado, do mesmo modo, inexiste ilicitude.



VIII- A EUTANÁSIA NO ÂMBITO CIVIL

Enfocamos, superficialmente, as responsabilidades no campo civil, no item 6 ( culpa civil). Aprofundemo-nos um pouco mais neste item.

O Código argentino, no seu artigo 1084, e o alemão, no art. 844, apresentam textos expressos sobre a matéria. Falam em indenização pelo dano sofrido. O alemão possui uma exceção: alude ao tempo provável de vida da vítima para orientar a fixação do montante e à obrigação de se indenizar o dano sofrido por quem contratara serviços ao falecido. E o brasileiro? O nosso Código Civil também traz texto de lei expresso sobre a matéria - é o artigo 1537, que reproduzimos:

"A indenização, no caso de homicídio, consiste:

I- No pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família;

II- Na prestação de alimentos às pessoas a quem o defunto os devia"

Interpretação ao pé da letra desses textos daria margem a uma excessiva restrição no que tange à responsabilidade do agente.

Clóvis Bevilaqua diz que o legislador brasileiro buscou fugir à excessiva generalidade com que se tratara a matéria da liquidação das obrigações, no Código Penal de 1830.

Contudo, ao fazê-lo, acabou por criar sistema muito tacanho. Insurgiram-se contra ele os pretórios e a doutrina. A rigor, a simples integração sistemática do Código afasta o entendimento originário que se cingia, rigidamente, às parcelas literalmente descritas no artigo 1537. Levando-se em consideração o estado atual de evolução, podemos afirmar os seguintes princípios, devidamente pesquisados:

1- Qualquer pessoa que tenha sofrido prejuízo tem ação de reparação, conforme o artigo 159, do CC. A concubina, por exemplo, que prove o dano emergente da morte do companheiro (RF-157:173);

2- O texto do artigo 1537 abarca, apenas, hipóteses especiais em que a necessidade de demonstrar o dano é atenuada, ou até mesmo dispensada;

3- O dano moral é indenizável. Já o dizia o artigo 76, parágrafo único, do nosso Código, quando o ratifica, com aura de Lei Maior, a Constituição Federal de 88, com todas as letras, no seu artigo 5º, V.

Dessa forma, ficaram definitivamente superadas as críticas à pretensão de ressarcimento baseadas na suposta "torpeza" de intenções. Não se pretende, claro, tratar a dor como mercadoria, mas proporcionar - e por que não? - aos atingidos meios econômicos que propiciem a eles o lazer necessário à mitigação de seu sofrimento. Sem falar, ainda, na imposição de pena privada que, aliada às sanções criminais, configura-se como fator jurídico dissuasório que pende sobre a cabeça do eventual homicida.

Outra eficácia dessa sanção civil, que não pode passar despercebida, é a de tranqüilizar os súditos do ordenamento jurídico, que têm por imprescindível a retribuição do mal causado. O Código venezuelano, no seu artigo 1196, in fine, já autorizara expressamente o juiz a conceder reparação pela dor sofrida por parentes, afins ou pelo cônjuge. Por isso, concordamos com o Dr. Erik Frederico quando afirma que andou bem nosso constituinte.

4- Nossa jurisprudência tem hesitado quanto à concessão de indenização por morte de filho menor. Descabidamente. E ela não se funda, como se pretendeu, na eventual capacidade de trabalho do filho, mas na construção anteriormente defendida. A Súmula 491 do STF já pacificou a matéria.

5- Pelo disposto na CF88, a pretensão, jungida ao dano moral, é hoje imprescritível. Não mais há razão para se discutir se a expressão "alimentos" usada pelo Código Civil remeteria à prescrição qüinquenal ou não. Deixou de haver prazo extintivo.

6- Pelo exposto, errônea a decisão que denegasse indenização sob o fundamento de que ao autor não assistia direito aos alimentos.



IX- PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE - O NEXO CAUSAL

Notamos em nossa pesquisa que, quando se fala em responsabilidade civil, os autores são unânimes nos elementos necessários para que haja a possibilidade de responsabilidade. Dentre eles, o nexo causal. Não há que se falar em responsabilidade se não o houver! Deixemos um pouco de lado a eutanásia, como centro da atenção, e colhamos opiniões a respeito da relação de causalidade dentre vários autores, pensando-se não especificamente na eutanásia, mas responsabilidades de modo genérico.

Jorge Peirano Facio observa que o conceito de causa, de conhecimento praticamente intuitivo, associa-se comumente às noções de anterioridade e necessidade. Juridicamente, pois, existe causa quando uma coisa ocorre depois da outra, de tal modo que, sem a primeira, a segunda não ocorreria. Dessarte, causa de um resultado seria aquilo que, se removido, faria desaparecer também o dito resultado. Filosoficamente, as discussões do tema são profundas. Peirano diz, a respeito, após sumariar as controvérsias: " Segundo o que se expôs, "tudo o que chega a ser tem a sua causa" é a correta expressão do princípio de causalidade, e a causa, no sentido de causa eficiente, é o influxo proveniente de outro ser que faz com que uma coisa seja o que é.

Deste modo, a relação de causalidade pode ser definida como o laço que se estabelece entre dois fenômenos quando um deles deve sua existência ao outro. Aplicada esta noção ao mundo jurídico, podemos afirmar que entre dois fenômenos existe relação de causalidade quando um deles deve sua existência ao outro."

Deve haver relação entre a ação ou omissão culposa do agente e o dano à vitima. Completa Forchielli que, para se poder chegar, partindo de um evento danoso, até seu autor, é indispensável assentar uma ponte entre esses dois extremos: em termos jurídicos, essa ponte se chama nexo de causalidade.

Para os Mazeaud e Tunc "não é suficiente, para que seja exigível a responsabilidade civil, que o demandante haja sofrido um prejuízo, nem que o demandado tenha agido com culpa. Deve reunir-se um terceiro e último requisito, a existência de um vínculo de causa e efeito entre a culpa e o dano, é necessário que o dano sofrido seja conseqüência da culpa cometida."

Verificamos, assim, que o laço causal deve ser demonstrado às claras, atando as duas pontas que conduzem à responsabilidade. O pleito indenizatório será improcedente sempre que não se evidenciar o liame de causalidade com o comportamento do réu. E quando o ato não é conseqüência de uma só causa claramente evidenciável, mas de resultado da concorrência de múltiplos fatores? Casabona dá a resposta: as teorias penais que explicam a causalidade ingressam aqui. Segundo a "teoria da equivalência das condições causais", causa será toda condição que haja contribuído para o resultado, em sua configuração concreta; na "teoria da causalidade adequada", causa será aquela condição da qual normalmente se deriva o resultado danoso e a "teoria da causa próxima", como diz o próprio nome, considera causa o fator que tenha condicionado, mais proximamente no tempo, o resultado, de modo que o mais próximo exclui o mais remoto. Na responsabilidade civil, não se dá a adoção obrigatória de uma dessas teorias, devendo a análise do nexo causal levar em conta os fatores que podem ligar a ilicitude da conduta ao resultado produzido.

Às vezes, a jurisprudência se inclina, reconhecendo a ocorrência de culpa, a determinar a existência de nexo causal - ou quando há concorrência de culpas, da própria vítima ou de terceiros, com o autor - considerar rompido o liame de causalidade.

Jaime Santos Briz fornece-nos reiteradas posições da jurisprudência espanhola quanto ao tema, que se revestem de interesse prático. Reproduzamos algumas:

a- princípio geral: entre o evento culposo ( inadimplemento da obrigação ou ação ou omissão extracontratual) e o dano a indenizar deve mediar relação de causa e efeito, que não pode embasar-se apenas em meras conjeturas, deduções ou probabilidades, mas sim numa indiscutível certeza probatória;

b- o nexo causal tem sido considerado em muitos casos como embasado na culpa do agente, exige-se um encadeamento entre o fato e o dano que consista na conexão e congruência entre ambos, de modo que a realidade de um conduza logicamente ao conhecimento do outro;

c- em caso de concorrerem várias causas, para apreciar a relação de causalidade tem-se que levar em conta que causa é a eficiente ou decisiva, que, por suas circunstâncias, determina o dano. Este aspecto depende, essencialmente, da avaliação de cada caso concreto;

d- para a existência da relação de causalidade entre a ação ou omissão e o resultado danoso é irrelevante a hierarquia da causa, posto que a condição posta pelo agente não necessita ser única, última ou a mais imediata e próxima ao evento danoso. Provado o ato inicial culposo do agente, surge a responsabilidade, qualquer que tenha sido a causa que desencadeou o dano;

e- a responsabilidade não pode ser declarada, se pela realização de acontecimentos intermediários entre o ato do demandado e o dano, surgem dúvidas de que tal ato tenha sido decisivo para o resultado.

Para que haja exclusão do nexo causal devido à ocorrência de caso fortuito, este deve estar intimamente relacionado com o dano; caso contrário, servirá apenas para atenuar a responsabilidade. A culpa do prejudicado afeta a relação causal, excluindo-a, se foi decisiva para a produção do evento danoso - ou atenuando-a, em benefício do agente, se meramente contribui para o resultado, o que se traduz na redução do quantum indenizatório. A relação causal não se interrompe pelo mero transcurso do tempo, se o resultado prejudicial deriva do dano originário.

O tema, como visto, assume contornos nitidamente casuísticos. Alguns autores, por isso, afirmam que os juízes devem dirimir as questões ligadas à causalidade, guiando-se por critérios que, em cada caso, levem à decisão mais justa, ponderando todas as circunstâncias, em vez de aplicar teorias abstratas.

Os tribunais espanhóis, assumindo postura realista, têm asseverado que "a determinação do nexo causal entre a conduta do agente e o dano produzido deve inspirar-se na avaliação das condições ou circunstâncias que o bom-senso aponte em cada caso como indicador de responsabilidade, dentro do infinito encadeamento de causas e efeitos, abstraindo-se por completo o exclusivismo doutrinário".

Vistas as diversas opiniões a respeito do tema por autores consagrados, voltemos à eutanásia.

Tomando-se em conta os pressupostos gerais da responsabilidade civil, vê-se que ela dar-se-á - na hipótese de eutanásia - desde que presentes os seguintes requisitos:

a- dolo, pois não há que falar em eutanásia culposa;

b- ação ou omissão, excluída esta na hipótese supradiscutida da ortotanásia;

c- nexo causal.

Quanto ao último, sabemos que ainda não se acha estudo satisfatório, em sede doutrinária pátria, a respeito. Se a morte não for instantânea, o problema põe-se. E resolve-se por meio do Direito Penal - com a teoria da equivalência dos antecedentes, em que causa é todo antecedente sem o qual o resultado não teria ocorrido. Não sendo possível suprimi-la hipoteticamente, sem afetar o último, está-se diante de uma verdadeira causa. O defeito está na excessiva amplitude: a ação do motorista que levou a vítima ao hospital seria concausa com a ação do médico que praticou a eutanásia. ( Ainda temos a teoria da causalidade adequada - declara que causa é o fato que, abstratamente considerado, produziria ordinariamente a conseqüência. Efeitos extraordinários subtraem-se ao nexo causal). A lei penal optou pela primeira, mitigando-a, conforme o artigo 13, do CP. Usando a linguagem da informática, se déssemos um "move" de tudo isso para o cível, esboçar-se-ia o seguinte quadro: a- agente é aquele que originou o resultado em conformidade à teoria da equivalência;

b- a superveniência da causa relativamente independente, que provoque desvio extraordinário no curso do desdobramento causal, rompe o nexo (obviamente, nem é preciso falar da causa superveniente absolutamente independente).

Podem vir a configurar concausas atos do próprio paciente da eutanásia, de terceiro, ou o caso fortuito e, acrescemos ainda, a força maior.



X- A COISA JULGADA PENAL - SUA INFLUÊNCIA.

O artigo 1525 do Código Civil estabelece:

"A responsabilidade civil é independente da criminal; não se poderá, porém, questionar mais sobre a existência do fato, ou quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no crime."

A título de observação apenas existe ainda a Súmula 18 de STF:

"Pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público."

O juiz penal, condenando ou absolvendo, com fundamento na existência ou não do delito, ou na atribuição ou não da autoria ao réu, torna tais verdades insuscetíveis de novo questionamento, no juízo da reparação. Por detrás dessa regra está o princípio jurídico-político do repúdio à contradição entre os julgados, o qual visa à preservação da segurança das relações jurídicas e do prestígio dessa ordem. Pode-se perguntar: e se a sentença criminal absolutória estribar-se na existência de excludente de antijuridicidade? Se o caso for de morte - que nos interessa - acha-se a resposta no artigo 1540 do Código Civil: há responsabilidade, a menos que a justificação relacione-se com culpa da vítima. Quanto à absolvição fundada em questões peculiares ao processo ou ao direito penal, não tem influência no cível.

Ainda no que concerne às circunstâncias excludentes, poderia parecer que o entendimento acima exposto seria prejudicado pelo artigo 65 do CCP. Tal não ocorre. A melhor interpretação é a de que os fatos lá elencados não poderão ser rediscutidos no juízo da reparação; mas isso não impede a reparação, em face do que dispõe o citado artigo 1540 do Código Civil.



XI- CONCLUSÃO

Em vista de todo o exposto, façamos, leitor, uma breve retrospectiva de tudo que enfocamos para, ao final, tomarmos uma posição a respeito de tão controvertido tema.

1- Deixamos claro na apresentação do trabalho que não era pretensão nossa exaurir o tema, dada a dificuldade de se encontrar literatura sobre a matéria ( sem falar, ainda, com perdão - é inoportuna a observação - das dificuldades econômicas por que todos passamos para investir em compra de livros, mormente estrangeiros, hoje caríssimos). Contudo, dentro da nossa humilde possibilidade, traçamos uma linha de abordagem que, sem dúvida, permitiu ao leitor ter uma visão dos problemas que afetam o tema. Para isso, usamos e abusamos dos conceitos de autores consagrados, trazendo, em grande extensão, a íntegra de suas idéias.

2- Vimos que a eutanásia é tema antigo. Praticavam-na os povos antigos - espartanos, birmaneses, populações rurais sul-americanas - e é motivo atual de preocupação em países considerados avançados, como a Holanda, por exemplo. E nos deparamos constantemente com casos, aqui e acolá, em que a prática da eutanásia vem à tona e acaba "mexendo" com a cabeça das pessoas, sobre sua licitude ou ilicitude, em termos abstratos ( uma vez que, na prática, inexiste, pois não é adotada pelo nosso Código).

3- Classificamo-la, à luz de certos aspectos, aceitos pelos estudiosos, pelos doutrinadores. Pode havê-la sob as mais variadas formas: espontânea ou libertadora; provocada ou piedosa; na forma comum; a eutanásia eugênica, tremendamente repugnante para nós; a eutanásia ativa e a eutanásia passiva ou ortotanásia.

4- Levantamos, embora sem citar nominalmente os autores, opiniões contras e prós a respeito dela. Notamos que, para os favoráveis, há determinados argumentos convencíveis. Outros não. Outros repugnantes, como os que abraçam a eutanásia eugênica. Sem dúvida, argumentos como o ser humano ter direito à morte condigna; como casos de situação irreversível, quando a própria ciência se sente impotente para solucionar, de fato, pesam.

Por outro lado, quando sopesamos os argumentos contrários que se embasam em princípios pétreos, como o de que a vida humana possui valor absoluto, que persegue fins superiores a si, sendo portanto indisponível, alicerçados em nossos espíritos pela formação cristã que a maioria das pessoas recebeu como educação moral e religiosa; no princípio de que o homem é simples peça encartada em uma ordem universal superior, não lhe competindo usar mal de seu livre-arbítrio para subvertê-la, em que simples dor não seria justificativa para atos extremos, são, na verdade, argumentos também bastante fortes.

Entram também opiniões realistas, que desmascaram a nossa hipocrisia. A rigor, quantas famílias, diante de enfermos em estado terminal, mas relutantes com a morte, não desejariam, no fundo, em vista da raríssima esperança de cura, acabar com o sofrimento? Não, muitas vezes, apenas do enfermo, mas deles próprios, os membros da família, que acompanham a agonia. Ainda mais se concorrerem com o sofrimento problemas econômicos.

Todos sabemos quanto custam leitos hospitalares hoje! Uma família sem grandes recursos econômicos, em situações assim, entra em conflito, porque, procrastinar tratamento duvidoso, cujo resultado será inexoravelmente a morte, significará a falência, além de, afinal, perder o ente querido! São situações que "balançam" o ser humano.

5- Porém, há casos - como o citado, de R.C.C, 23 anos - que, sem dúvida, colocado a julgamento de qualquer pessoa, esta daria como veridicto a eutanásia. Não há motivos, neste caso específico, para que se apliquem lenitivos extraordinários, se a vida não mais se sustenta, em virtude do colapso de suas funções. Esperar o quê?

6- Claro que o nosso tema está diretamente ligado ao direito à vida. Propositadamente, fizemos uma imbricação desse direito com o direito à integridade física da pessoa, visto que ambos se encontram imbricados ( com perdão pela redundância) na eutanásia. Como justificá-la como lícita, diante do direito à integridade física e do direito à vida que possui um enfermo. Grosso modo, pela indisponibilidade do bem jurídico em questão, não pode nem o enfermo, nem terceiros, dispor dela, o que, acreditamos, conseguimos demonstrar no item 5.

7- Em seguida, tecemos considerações a respeito da culpa civil e da culpa penal. E ao abordarmos esses assuntos, colocamos no centro deles a figura do médico e sua responsabilidade, tanto civil, quanto penal.

8- Enfocamos, depois, a eutanásia sob o ponto de vista penal, dispondo, segundo nos ensina Jiménez de Asùa, que tratamento poderia a eutanásia receber sob a ótica penal. Ali constatamos que, indiretamente, o tema é tratado no nosso Direito sob o manto de delito privilegiado ( artigo 121, §1º) - há a prática do ato impelido por motivo de relevante valor social ou moral.

Depois, enfocamos sob o ponto de vista cível, em que o cidadão encontra seus direitos por meio de ressarcimento indenizatório e prestação de alimentos, desde que, comprovadamente, tenha o réu agido de forma que se configure crime ou delito. E claro ficou, sob a égide de opiniões abalizadas, que um ato desse nada tem de "torpe" por parte de quem o exige.

9- Debatemos o elemento primordial para que haja responsabilidade civil - o nexo causal. Buscamo-lo, inicialmente, de forma genérica, em casos que não fossem relativos à eutanásia, para, posteriormente, encaixá-lo no nosso tema.

Acreditamos que possibilitamos ao leitor uma ampla visão do problema. Assim como ficou caracterizado, segundo o ponto de vista do conceituado Dr. Erik Frederico, que, no caso de eutanásia, os requisitos essenciais são o dolo ( não há que se falar em eutanásia culposa); a ação ou omissão

(excetuada a hipótese da ortotanásia) e o nexo causal, este, conquanto não haja estudo pátrio satisfatório, socorre-se na teoria da equivalência dos antecedentes, buscado no nosso Código Penal, que o adota ( artigo 13).

10- Encerrando, mostramos a influência da coisa julgada penal na responsabilidade civil.

Evidentemente, como autor deste escorço, o leitor nos poderia cobrar, querendo saber que posição tomamos sobre a eutanásia. Vamos repetir-nos, uma vez que, em determinados trechos, deixamos transparecer claramente nossa opinião e posição. Como dissemos, há argumentos fortes, tanto a favor, como contra a eutanásia. A tentativa de, a exemplos de outras legislações estrangeiras, regulamentar legalmente a eutanásia no Brasil, ocorreu, conforme já dissemos, no Anteprojeto da Parte Especial do CP (artigo 121, § 3º). Mais feliz que a idéia do legislador foi a "tirada" do Professor Goffredo Telles Jr., com sua irônica observação de que os velhos ricos deveriam pôr suas barbas de molho. Humor negro, é verdade, mas real. Conquanto toda a discussão, acompanhamos a opinião do ilustre Dr. Erik Frederico Gramstrup - somos favoráveis à ortotanásia, no seu sentido estrito, ou seja, o médico se omite e deixa de prolongar, por meios artificiais e extraordinários, uma vida irrefragavelmente condenada. Conforme o enfocado, afastar-se-ia a questão da omissão, penalmente relevante, constante do artigo 13 do CP, estribado no mesmo artigo, isto é, se inexiste dever de agir, comando que obrigue a impedir o resultado, do mesmo modo inexiste a ilicitude.

Reiteramos que este escorço é baseado em opiniões e conceitos de autores consagrados, conforme a bibliografia abaixo nos demonstrará, muitos deles compilados integralmente. O valor deste trabalho talvez esteja em facilitar ao estudante o acesso a assunto de tão pouca literatura.



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Sobre o autor
Wilson Paganelli publicou também "Reflexões sobre a comunicação escrita na linguagem jurídica" (1997) e "A eutanásia - conceitos e opiniões de autores consagrados".

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Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº21 (11.1997)
Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
PAGANELLI, Wilson. A eutanásia . Jus Navigandi, Teresina, ano 2, n. 21, nov. 1997. Disponível em: . Acesso em: 03 mar. 2009.

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