"Rábulas do Direito"
Nos dias de hoje, com a proliferação desordenada das faculdades de Direito, com a baixa qualidade do ensino jurídico e com o assustador índice de reprovação nos Exames da OAB, surgiu uma figura nova na comunidade jurídica, o simplesmente "Bacharel em Direito". Se antes era referência apenas para profissionais notariais, o famoso "Bel.", hoje trata-se de um personagem que vive no limbo jurídico, onde o diplomado não advoga. Embora vivamos esta realidade cada vez mais crescente, e que parece ser irreversível, há pouco mais de meio século atrás, a situação era inversa onde tínhamos advogados que não tinham o grau de bacharel, chamados de rábulas.
Um país de dimensões continentais, com um vasto interior e abrindo suas primeiras academias jurídicas, não dispunha ainda de profissionais para formarem a tríade da justiça, acusação, defesa e julgador, de forma, que como diz o ditado popular, "em terra de cego quem tem um olho é rei", pessoas um pouco mais esclarecidas que a grande massa analfabeta da população, serviam para postular em nome alheio.
Poucos eram os bacharéis no Brasil Colônia e Império, mormente formados pela Universidade de Coimbra/Portugal, sendo que somente depois começaram se inserir no mercado as primeiras turmas formadas pela Academia de Direito de São Paulo (Largo São Francisco) e de Olinda (atual UFPE). Devido a escassez de diplomados em Direito, estes, logo eram absorvidos pelas carreiras públicas como Magistratura, Ministério Público, dentre outros cargos nos poderes executivo e legislativo. Sobravam poucos para advocacia, sobretudo, no interior do país. Daí a necessidade de se suprir a demanda, sendo que em 24 de julho de 1713 estatuiu-se que fora da Côrte podia ser advogado qualquer pessoa idônea, ainda que não formada, tirando ela uma licença, chamada de provisão.
Não trata-se de uma invenção brasileira, outros países também os tiveram em determinada fase histórica. A atuação derivava de um farto compilado de técnicas e estrategemas para atuação perante os órgãos judiciais e públicos. Como ensina Roberto Lyra " É o rábula e não o jurista o que aprende em manuais, repertórios, formulários, ementários, dicionários, ou imitando ou recolhendo nas emergências a sabedoria do colega, do escrivão e até do oficial de justiça."
Para se tornar rábula a pessoa tinha que obter a provisão, conferida pelo presidente da relação, autoridade judicial da época. A licença tinha validade de um a dois anos, renováveis, mediante exames teóricos e práticos ( qualquer semelhança não é mera coincidência), de acordo com a escassez de profissionais formados e da conveniência da administração da justiça. O poder postulatório estava restrito à primeira instância e a atuação era predominante na área criminal, onde, naquela época, quase tudo era julgado através da instituição do júri popular, hoje restrito somente aos crimes dolosos contra a vida.
Embora esta lendária figura seja repleta de romantismo, sobretudo, pela existência de rábulas que deixaram marcos na história do Direito brasileiro, devido a grandes atuações, a relação entre os advogados-bacharéis e os provisionados era de amor e ódio, ora dividiam as tribunas fazendo trabalhos em conjunto, ora os primeiros (diplomados) desferiam severas críticas sobre a conduta procedimental dos não-bacharéis. Numa discussão em 1826 sobre os vencimentos dos professores das academias de Direito que seriam criadas, o Deputado José da Cruz Ferreira afirmou: "qualquer rábula hoje em dia faz por ano de 10 a 20 mil cruzados e, muitas vezes, são entes nulos, que nem sabem escrever o próprio nome...". Muitas eram as críticas e conforme a concorrência ia crescendo o cerco ia se fechando sobre os provisionados. Em 1946 indignado com o excesso de bacharéis e propondo a limitação de faculdades de Direito, assim narrou o advogado Antonio Manuel de Carvalho Neto: " contrariando, porém, esse presumido excesso, o que vemos é o enxame de rábulas pelos cartórios, disputando aos advogados os magros proventos da profissão".
As leis disciplinantes da advocacia vinham cada vez mais extirpando a figura do rábula, as instituções de classe, como primeiramente o Instituto dos Advogados Brasileiros e depois a Ordem dos Advogados do Brasil, não ofereciam guarida para este profissionais, que outrora foram tão uteís para o desenvolvimento da justiça do país. Poucos foram os que reconheceram seu verdadeiro valor, como Ruy de Azevedo Sodré e Getúlio Vargas, este último, que em decorrência da grande quantidade de rábulas no Rio Grande do Sul os defendeu o máximo que pôde. O estatuto da OAB de 1963, fez com que a provisão fosse perene, protegendo aqueles que já exerciam a profissão. O atual estatuto, de 1994, extinguiu totalmente esta mitológica figura do Direito Brasileiro.
Não obstante o trágico, porém, lógico e inevitável fim dos rábulas, muitos ficaram famosos nas épocas em que atuaram, exercendo a advocacia com tanto brilho e arte, que entraram na história do Direito como figuras ilustres, eloquentes oradores, juristas de primeira água e corajosos defensores dos direito humanos numa era de arbitrariedades. Sem o devido preparo enfrentavam promotores, juízes, delegados, advogados e toda sorte de autoridades para defenderem seus clientes, na maioria das vezes, de forma não onerosa.
Antonio Evaristo de Moraes
Carioca, foi o mais consagrado deles, atuando em diversos júris de clamor popular, dentre eles a dupla absolvição de Dimermando de Assis no homicídio de Euclides da Cunha, e de seu primogênito Euclides da Cunha Filho. Um dos julgamentos mais emblemáticos que atuou, embora tenha perdido, foi de seu pai, acusado libidinagem contra crianças de um orfanato que trabalhava. Formou-se em Direito aos 45 anos de idade, no ano 1916, sendo que nesta época já era criminalista renomado.
Luiz Gama
Mulato, durante a infância na Bahia foi vendido como escravo pelo pai português. Na tentativa de vendê-lo o mercador fez o menino andar a pé de Santos à Campinas. Como ninguém quis comprá-lo, retorna à casa de seu senhor no Rio de Janeiro onde conhece um rapaz que se hospedara na mesma casa e o ensina as primeiras letras. Entrou para Marinha, foi escrivão de polícia e enfim rábula em São Paulo. Ganhou grande notoriedade social, sendo jornalista, líder abolicionista e advogado , sobretudo, de escravos que fugiam dos seus senhores.
José da Costa Pinto.
Foi estivador e orador de sua associação de classe. Embora só tivesse o primário, tinha uma excelente oratória, ironizava os advogados formados apontando o dedo às pessoas que não tinham estudo e afirmando: "Aquele é meu colega de turma". Participou de diversos júris e era respeitado tanto pela defesa como pelos acusadores. Teve como um dos seus grandes admiradores o criminalista Evandro Lins e Silva, que foi ministro do STF. Faleceu na tribuna durante uma defesa em 1942.
Quintino Cunha
O mais irônico dos rábulas, tinha um raciocício rápido, que tirava o sono do promotores do norte e nordeste. Certa vez um promotor iniciou sua fala com a seguinte frase : " senhores do conselho de sentença, eu estou montado no código penal..." e rapidamente Quintino aparteou-o dizendo: " pois Vossa Excelência fez muito mal em montar em animal que não conhece...". Com estas tiradas rápidas chamava a atenção e simpatia para sí, e consequentemente resultados positivos nos casos que atuava.
Manoel Vicente Alves
Conhecido como Doutor Jacarandá foi figura emblemática, sua especialidade eram causas de despejo. Negro alto, de cavanhaque grisalho dividido em duas pontas, usando um "frack" empoeirado com cravo vermelho na lapela, era conhecido por todos no foro da cidade do Rio de Janeiro. Sua maior característica era como maltratava o vernáculo jurídico. Dentre suas pérolas estão " sinhô dotô meretismo", "antendê as parties", " impetrá hábis corpis" e "manutenção de póssia"
Cosme de Farias
Falecido em 1972 com 96 anos, foi um dos rábulas mais queridos da Bahia, tendo hoje até um bairro com seu nome em Salvador. Atendia em uma escrivaninha no corredor de uma igreja, mais de 30 pessoas por dia. Sua média diária era de 04 pedidos de soltura. Foi um dos maiores entusiastas do combate ao analfabetismo. Jorge Amado nele se inspirou para criar o personagem Major Damião, no livro Tenda dos Milagres. Teve intensa vida política como vereador e nos últimos anos da sua vida como deputado estadual, onde foi considerado parlamentar mais velho do mundo.
Antonio Pereira Rebouças
Também mulato, foi rábula em Salvador e deputado no Império. Advogou para família Andrada e Silva, Diogo Antonio Feijó e José Bonifácio.
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