sábado, 25 de outubro de 2008

O direito americano


artigo de Paulo Fernando Silveira*

Reporto-me ao artigo de autoria do dr. Saulo Ramos, onde afirma que os Estados Unidos têm o direito infraconstitucional da face da Terra civilizada (Folha, 14/8.98). Quem formula publicamente uma pergunta (Isso é Direito?), logicamente aguarda uma resposta, que tenho o prazer de, amistosamente, dar. É compreensível que o renomado ex-ministro, famoso por sua singular erudição, rápidas e bem humoradas colocações, ao estilo de Cícero, estranhe o direito americano, pois a cultura latina é a da escravidão à lei, editada pelo poder central de modo genérico para todo o país, a maioria por meio de medidas provisórias, nas quais impera a vontade singular, própria de regimes totalitários, a que se submete um povo não acostumado ainda com a liberdade e preso, pelo passado, à tirania dos governantes.

Nos EUA o povo é o titular do poder e não permite a nenhum governo o domínio sobre ele. Muito menos pelo poder central, que é controlado, em virtude do princípio federalista (estruturante da nação) pelos entes políticos locais (estados e conselhos das cidades ou condados). Lá, a lei, em virtude de uma correta e proporcional representatividade política, há de se conformar com a vontade, primeiramente da comunidade local e, em segundo lugar, do Estado. A União só pode legislar, restritivamente, sobre assunto de interesse geral, deixando para a comunidade o regramento de matérias que lhes são peculiares. De modo que, mesmo a lei, lá, parecendo extravagante para alguém de cá, representa em regra a vontade da sociedade local, expressa por sua maioria.

Por isso, é cumprida e respeitada. Por fim, a lei tem que guardar sintonia com a Constituição, não só no seu aspecto formal, mas profundamente com os princípios de liberdade, decência e justiça depositados na Carta Política. Visando controlar os demais ramos governamentais, o Judiciário daquele país constitui-se poder político desde quando, em 1803, o Chief-Justice Marshall, ao julgar o famoso caso Marbury x Madison, afirmou que o Judiciário tinha o poder de tornar nulos os atos do Congresso. Desse modo, como poder político não eleito, cuida de salvaguardar o indivíduo e as minorias contra as leis da maioria que os prejudiquem, tornando concretos os preceitos constitucionais (a Constituição é toda auto-aplicável). Nos EUA os membros do Judiciário Federal (District Courts, Courts of Appeals e US Supreme Court) são todos indicados politicamente pelo presidente da República. Em alguns estados-membros há eleições para o preenchimento de cargo de juízes, somente quando há vacância, já que, depois de eleito, o juiz só perde o cargo, em regra vitalício, se tiver comprovadamente mal comportamento.

A elevada qualidade do direito americano é revelada por duzentos anos de liberdade, de progressos econômico e tecnológico e regularidade democrática do governo (ausência de golpes e ditaduras). No âmbito criminal, também a superioridade é evidente, bastando ver algumas garantias básicas asseguradas ao acusado: 1) ser julgado pelo júri (quer dizer, pela sociedade em que vive e da qual compartilha valores, e não pelo estado-juiz) composto de 12 pessoas (maior representatividade social); 2) os jurados, após discutirem entre eles a causa, respondem apenas a uma questão de fato: culpado ou inocente; 3 ) a decisão tem que ser unânime. Quanto ao direito de o réu permanecer calado,lá é o usual, enquanto que, no Brasil, o juiz é obrigado a interrogá-lo, o qual, se for culpado, ou confessa o crime (produzindo prova contra si, o que é proibido) ou mente (o que é moralmente reprovável, máxime numa Corte de Justiça). Note-se que a Constituição brasileira não abandona a mentira, mas assegura apenas o direito de o réu ficar calado. Por isso, nos EUA o réu só é ouvido no interesse da defesa, quando então responde por falso testemunho (perjúrio). É o caso do presidente Clinton. Sendo réu no processo que lhe move Paula Jones, por assédio sexual, no qual Monica Lewinsky foi arrolada como testemunha de sofrer igual constrangimento, tanto ela quanto o réu (este publicamente) negaram o fato. Agora, mediante imunidade criminal, ela, ao que se sabe, voltou atrás. Aí o crime do presidente ficaria evidenciado.

Não se debate o relacionamento sexual do presidente, que é livre quando espontâneo pela outra parte; mas sim o assédio indevido e, notadamente, o provável perjúrio praticado — por quem ocupa o cargo público mais poderoso do mundo — visando obstruir a Justiça. Se for permitido ao presidente mentir, toda estrutura democrática (pela qual todos são iguais perante a lei) ruirá. Portanto, de parabéns está o Ministério Público dos EUA, que luta pela manutenção das instituições do país, ainda que a busca ocasional da fama por um de seus membros possa ser a motivação. A fama, pela qual muitos anseiam, tem poder de alavancar o homem, tornando-o ousado e fazendo-o enfrentar perigos.

A partir destas singelas colocações, pode-se inferir, sem erro, a superioridade do Direito Americano, que devemos seguir como paradigma, a uma, porque a estrutura de nossa Carta Política, desde a de 1891, é uma cópia da Constituição Americana de 1787 e, as duas, porque nossa Lei Fundamental de 1988 adotou, com atraso de quase oito séculos em relação à Inglaterra e duzentos anos, referentemente aos EUA, a cláusula do devido processo legal, que autoriza o Judiciário a atuar politicamente, em reforço ao princípio da separação dos poderes e da doutrina dos freios e contrapesos (checks and balances), examinando o conteúdo das leis, a fim de verificar se se harmonizam com os princípios básicos (democracia, federalismo, república, liberdade individual, livre iniciativa etc) depositados na Carta Política, como demonstrei em meu livro ‘‘Devido Processo Legal’’ (Due process of law). Creio que chegou a hora de mais uma conversão do Saulo para Paulo.



* Paulo Fernando Silveira é Juiz Federal em Uberaba, Minas Gerais

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